CLÁUDIO EDUARDO DE SOUZA
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“Estrangeiros porcos!”, grita repetidamente um homem repulsivo, com o cabelo lambido e olhar de quem acredita ser de uma raça superior. O todo-poderoso da Alemanha xinga, enquanto vê corpos serem retirados do caminho por onde passa. Algumas pedras são lançadas nas pessoas, visivelmente fracas, que fazem o trabalho de recolhimento dos cadáveres. Eles não ousam esboçar qualquer sentimento. Tudo o que querem é que o sofrimento acabe. Já não temiam a morte. Viam nela o remédio. E ainda sob o olhar e gritos de Hitler, dona Helena abre os olhos. Acorda assustada. Não era um pesadelo. Eram as lembranças do passado que insistiam em voltar sempre que ela tentava dormir. O campo de concentração nunca a abandonou.
Era setembro de 1939 quando a Alemanha Nazista invadiu a Polônia. Helena Sekala tinha 14 anos. Viu toda a família ser morta e, colocada num trem, embarcou rumo ao pesadelo que a acompanharia pelo resto da vida. Sozinha num lar de idosos em Tijucas quando resolveu contar a própria história, em 2015, dizia ainda sentir o cheiro da chegada a um campo de concentração na Alemanha. “O trem estava cheio de pessoas jovens. Os velhos eles não levaram, mataram antes. Ouvíamos uma música alta e de longe já dava para ver a fumaça. E não demorou para que nós sentíssemos o cheiro de carne frita. Eles jogavam pessoas vivas lá, antes raspavam o cabelo, tiravam as roupas e arrancavam os dentes”, relatou, como se ainda respirasse o ar fétido de mais de sete décadas atrás.
Foram mais de cinco anos presa. O convívio com a morte era diário. Helena estava sozinha. Sem família, sem amigos e, aos poucos, sem vontade de viver. “Eles nos tratavam feito cachorros. Todos os dias eu tinha medo de morrer lá. Bombas e mais bombas. Fogo. Fome. Só lembranças ruins. Era muito pior do que mostram os filmes! Infelizmente, ainda lembro de tudo. Quando fecho os olhos vejo Hitler passando, nos chamando de estrangeiros porcos e jogando pedra em nós. Coisa ruim a gente não esquece”, narrou, enquanto viajava num passado que preferia ter deixado nas ruínas pós-guerra da Europa.
No campo de concentração, Helena usava um uniforme verde escuro com a letra “P” no peito. Era um indicador do motivo pelo qual ela havia sido capturada pelos nazistas: “P” de polaca. Trancada, trabalhava numa fábrica de artefatos bélicos e era proibida de conversar com os outros presos. Da mesma forma, tinha que baixar a cabeça na passagem dos alemães. Qualquer comunicação seria motivo para que ela e quem a respondesse irem para a forca.
Pouco antes do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, Helena teve a certeza que iria morrer. “Separaram um grupo com 30 moças. Eu estava entre elas. Já tínhamos tomado banho, mas nos separaram para ir a um segundo banho. Sabíamos o que isso significava: iam nos levar para a câmara de gás. Só que depois, não sabemos por qual motivo, desistiram. A verdade é que a gente já estava cansada da vida. Naquele momento, pensar na morte nos
tranquilizava. Seria uma forma de parar de sofrer”, desabafou. Setenta anos depois de ganhar a liberdade – com o fim da Segunda Guerra e a derrota da Alemanha – os olhos azuis celestiais ainda transpareciam todo o sofrimento dos mais de cinco anos em que foi refém dos nazistas. Viver perdia o sentido conforme enxergava a crueldade.
RECOMEÇO: uma prisioneira das lembranças
“Ainda lembro da estrada que tinha corpos como lixo. O sangue escorria como água da chuva. E nós tínhamos que limpar para o Hitler passar”
Passados mais de 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, do fechamento dos campos de concentração e da tentativa de nova vida dos sobreviventes, Helena continuava vítima da própria lucidez. Viveu quase três anos no Lar Santa Maria da Paz, em Tijucas. E na semana passada ela se foi. Morreu vítima de insuficiência renal.
Perdeu o marido havia nove anos. O único filho também morreu. Restaram dois netos e a nora, que a visitavam periodicamente. Os mais de 90 anos de idade e os traumas do passado não tinham afetado em nada a memória – ao contrário do que ela gostaria. “Tudo que eu mais quero é esquecer de tudo, perder todas as lembranças. Ainda lembro da estrada que tinha corpos como lixo. O sangue escorria como água da chuva. E nós tínhamos que limpar para o Hitler passar. Nada sai da minha cabeça, por mais que eu tente não mexer no passado”, confidenciou.
Em 1945, quando os alemães perderam a guerra, os presos foram libertados dos campos de concentração. Mesmo deste momento que era para ser de alegria, Helena tinha recordações tão ruins quanto às do tempo em que estava trancada. “Quando a guerra acabou, vimos russos, americanos e franceses matarem muitos alemães. Estupros, roubos... Eles se vingaram. E nós presenciamos tudo isso”, salientou, também com repúdio à violência daqueles que a libertaram.
Helena foi, então, levada para a Itália junto com outros sobreviventes dos campos de concentração espalhados pela Alemanha. Lá, podiam escolher para qual país queriam recomeçar a vida. Ela já não tinha mais família, amigos ou pátria. Nunca mais pisou na Polônia. Entre o fim da guerra e a ida para outro país, conheceu o amor num jovem polaco com história igual à dela. Outro sobrevivente. Decidiram que o destino deles seria o Brasil. Embarcaram numa viagem de um mês pelo mar. “Passamos muito frio na Alemanha. Queríamos esquecer essa sensação e escolhemos o Brasil por ser um lugar quente e longe de onde passamos tanto sofrimento”, justificou. A primeira parada foi no Rio de Janeiro. Só depois vieram para Santa Catarina. Ironicamente, foram para Blumenau – cidade de colonização alemã. “Eu tinha muito medo que eles viessem no Brasil, atrás de nós, para se vingarem. Por muito tempo pensei nisso”, confessou.
TRAUMAS PARA SEMPRE
No lar de idosos, dona Helena era observada por uma psicóloga. Tinha dias que ainda voltava no passado e sofria como se fosse a menina polaca de 14 anos prestes a ser capturada pelos nazistas. “Ela não falava sobre o assunto. Nunca nos contou detalhes do que aconteceu naquela época. Só tinham vezes que nos dizia que não dormia porque era polaca e os alemães queriam a pegar”, conta a psicóloga Giovanna Ronchi, destacando que muitos dos idosos sofrem por traumas do passado, mas que o caso de Helena era peculiar. “É muito delicado, por isso não falávamos sobre isso, preferíamos estimular que ela vivesse e falasse sobre o presente”, ressalta. Helena também recebia acompanhamento psiquiátrico. E em todas as conversas, sempre destacava o maior desejo: esquecer Hitler, esquecer a música na chegada do trem, esquecer o cheiro da fumaça do campo de concentração. Queria que todas as lembranças desaparecessem.
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