– Fala para o teu tio!
– Eu não tenho câncer, tio.
– Foi a bênção de Madre Paulina.
Por quase dez anos, o tio acreditou que a sobrinha, hoje com 19 anos, tinha câncer. Fazia promessas à Santa Paulina, rezava e ajudava. Passara este tempo todo, da mesma forma que todos os outros familiares (com exceção da mãe), sem ver o rosto da menina. Era escondido por uma máscara. Todos acreditavam que o acessório servia para proteger um câncer na boca, mas, na verdade, servia para disfarçar uma doença que não existia.
Os relatos da história de vida de A. L. R. são feitos à reportagem por familiares da menina. Indignados com a descoberta – e confissão de mãe e filha – de que a doença era uma farsa, pedem para não terem o nome divulgado. Equilibram revolta e vergonha da situação, mesmo que a culpa deles seja a mesma de muitas e muitas pessoas que ajudaram com doações ao longo do tempo: a de não desconfiar.
A. tinha uns nove anos de idade quando foi ao médico por conta de uma adenoide. O médico teria percebido algo estranho na boca de menina. Ela teve dois dentes de trás extraídos para que fosse feito biópsia. Enquanto isso, deveria usar uma máscara. O acessório a acompanhou para sempre. A mãe saiu confirmando que era câncer o que a filha tinha. Todos acreditaram. E começou a saga que, até então, era de luta pela vida.
A DESCOBERTA
Depois de quase 10 anos sem frequentar escola, indo para Florianópolis com o argumento de ir ao médico e sem deixar que qualquer pessoa que não fosse a mãe a visse sem máscara, A. decidiu deixar uma brecha para que alguém descobrisse que não tinha nada na boca. Colocou, sem que a mãe imaginasse, uma foto sem máscara num aplicativo do celular. Tinha lá alguns amigos. Esperava que algum deles percebesse. Foi o que aconteceu.
“Ela nunca perdeu o cabelo. A mãe nos dizia que era porque não iria aguentar fazer quimioterapia. Depois que descobrimos, a menina nos disse que não falava porque a mãe batia. Inclusive, fazia a filha só se alimentar com os alimentos líquidos e pastosos que ganhava das pessoas. Quando saía de casa, contava os pães para a filha não comer”, conta uma tia.
Quando a família se reuniu para pressionar a mãe (já tendo a confissão de A. de que ela não tivera câncer e que não realizava as cirurgias que, ao longo dos anos, a mãe dizia que ela fez), a menina chorava. E a mãe apenas dizia “não sei porque fiz isso!”. O pai, segundo os familiares, estava tão assustado quanto os outros. Também acreditava que a doença era real. “Ela levava a filha para Florianópolis com o carro da Saúde, mas quando chegavam lá não iam fazer nada. Ela beliscava a menina para enganar um psiquiatra de que era a filha que fazia nela mesma. Daí ele receitava remédio e, por isso, a menina ficava tremendo e suando quando a gente chegava para visitar. Esse câncer rendeu muito dinheiro para ela”, relata a tia, ainda inconformada.
“DEUS, me dê força pra passar essa fase difícil...”
Pessoas que ajudaram com doações, não se conformam. Pretendem, inclusive, procurar a polícia
“Cheguei numa fase que não sei pra onde vou, o que devo fazer, o que é certo e o que é errado, quem me ama e quem me odeia, quem tá do meu lado e quem tá contra mim. DEUS, me dê força pra passar essa fase difícil...”, postou A. L. R. numa rede social. Foi também pela internet que, meses antes, começou uma campanha para ajudar a menina – que até onde se sabia, passava necessidades e não tinha condições para comprar alimentos líquidos e pastosos, já que não podia comer nada sólido.
A dona de casa Fabiana Pereira, 31 anos, fez uma campanha pelo Facebook. Arrecadou alimentos e dinheiro. Antes que fosse fazer a entrega, foi procurada por familiares de A., informando que descobriram que tudo não passava de uma farsa. Fabiana, então, devolveu tudo para as pessoas que colaboraram. “Depois dessa história, não tenho mais coragem de pedir nada para ninguém”, desabafa.
Fabiana conta que o pai dela era líder comunitário e sempre ajudou. Chegou a fazer ações para arrecadar dinheiro. “Meu pai morreu há quatro anos. Lembro de uma vez que ele fez um bingo para conseguir R$ 5 mil que a mãe dizia que precisava para a cirurgia. Na época, o bingo rendeu menos e ele completou com o próprio dinheiro”, comenta. Ela diz que demorou para acreditar. No dia que foi procurada por parentes de A. que contaram a história, Fabiana passou mal e precisou de atendimento médico. “A mãe é muito atriz. Quando eu ia lá, sempre voltava chorando de pena. Conversei com uma advogada e devo registrar um boletim de ocorrência”, destaca.
SENTIU LESADA
Outra que consultou um advogado e vai procurar a polícia é a gerente comercial Taise Laurindo, 27 anos. Ela arrecadou, com as amigas, dinheiro para comprar alimentos líquidos. Chegou a conversar com dono de supermercado para conseguir desconto. “Estou inconformada, sentindo como se fosse uma idiota. Eu sofri com a história dela, saí de lá chorando por não poder ajudar mais. Estou inconformada que uma pessoa possa fazer uma coisa dessas”, comenta.
VÃO INVESTIGAR
Apesar de o caso ser antigo, a atual secretária municipal de Saúde, Adriana Porto Faria, abriu investigação dentro da pasta para entender o caso. “Não houve negligência por parte da secretaria. Ela era tida como uma paciente crônica, uma menina fraca e de máscara, por isso já ia com frequência”, ressalta. Adriana conta que, da mesma forma que a comunidade, os motoristas da Saúde se envolviam com a história e procuravam ajudar. “Ela ia para Florianópolis há quase 10 anos. Não podemos ainda afirmar que a família usava o câncer, porque ainda estamos colhendo informações. Se depois o jurídico ver necessidade, vamos solicitar judicialmente os prontuários médicos”, garante.
ERA UMA CRIANÇA
Apesar de hoje ser maior de idade, A. L. R. era uma menina quando a história começou. Por conta disso, o Conselho Tutelar deve entrar no caso. Fez, inclusive, uma visita à casa dela esta semana. Durante a ida, A. teria admitido que postou a foto sem máscaras de propósito, pois estava cansada da mentira. E ao Conselho, a mãe disse apenas que não sabe o que deu na cabeça dela para fazer isto.
“Vamos fazer um ofício ao Ministério Público pedindo providências sobre o assunto. Os pais vão ter que responder a um processo, sim”, salienta a presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Tijucas, Rosely Steil. Ela acredita que A. irá precisar de um acompanhamento psicológico para tentar superar tudo que passou. “Como está a cabeça dessa menina? Ela não viveu até agora. Ela vegetou”, conclui.
|