“Olhem os golfinhos!”, gritava alguém para as crianças que, em quase todo momento, passavam mal pelo balançar do navio em alto-mar. E eles iam admirar as peripécias dos animais na água azul. Era uma das distrações de quem acabara de fugir da terra-natal e não sabia onde o barco iria atracar. A única certeza das centenas de famílias é que não podiam continuar na Angola. A guerra estava apenas começando.
Era 1º de janeiro de 1976 quando os pais da pequena Rosária, na época com oito anos de idade, pegaram ela e o irmão e encararam uma viagem de 18 dias de navio. Precisavam fugir da Angola. A guerra tinha começado. “Nós sofremos muito. Ficamos doente, passamos mal na viagem e nem sabíamos onde o navio ia nos levar”, comenta a angolana Rosária João Lopes – uma ajudante de cozinha que, hoje aos 47 anos, vive em Tijucas.
Em 11 de setembro de 1975, a Angola conquistou a independência. Contudo, em seguida, grupos com visões políticas diferentes começaram, então, a Guerra Civil Angolana – que duraria até 2002. Foram mais de 300 mil mortes.
Rosária não entendia de política. Tinha pouca noção da transformação que acontecia no país. Pelas ruas de Benguela – capital de uma província do oeste – brincava com uma amiga. Foi a primeira da família a ouvir que a guerra iria começar. “Passou por nós um senhor anunciando no alto-falante. Dizia que, quem não tivesse a carteirinha vermelha, que era de quem pertencia à oposição, iria morrer. Corri para casa e contei para minha mãe, mas ela não acreditou”, recorda. Não demorou para que bombardeios na vizinhança confirmassem a história da menina. Apesar de terem a tal carteirinha vermelha, não estavam dispostos a continuar na zona de conflito. Precisavam fugir para qualquer lugar longe dali.
OS NAVIOS DE ANTUNES
A mãe de Rosária era dona de casa. O pai, pescador. E foi o patrão dele quem ofereceu para dezenas de famílias uma saída: deixou cinco navios à disposição para que pudessem fugir da Angola. “Antes de embarcar, estivemos no local onde os barcos estavam atracados. E tinha um soldado armado que nos dizia que, se a gente tentasse fugir, ele atiraria para afundar o navio”, conta. Mas na noite em que eles fugiram, o soldado não estava lá. “Ir embora era a melhor solução. Desde que começaram os bombardeios, tínhamos muito medo de morrer!”.
O dono dos navios, segundo Rosária, era um português. Seu Antunes. “Ele nos trouxe, vendeu os barcos, deu dinheiro para ajudar as famílias a comprarem suas casas e voltou para Portugal. Quando chegou lá, soubemos que morreu. Uma pessoa boa que cumpriu o seu papel aqui na terra”, acredita a angolana, que se diz eternamente grata ao homem que teria ajudado na fuga e na reconstrução da vida das famílias refugiadas no Brasil.
RECOMEÇO
A história ficou além-mar
“Ir embora era a melhor solução. Desde que começaram os bombardeios, tínhamos muito medo de morrer!”
O Brasil foi o destino, que para os refugiados era tido como incerto ao longo dos 18 dias de viagem. “Poderíamos ter morrido em alto-mar. Mas viemos cheios de esperança, mesmo sem saber onde o navio iria parar”, salienta Rosária. E foi em Santa Catarina que as embarcações que traziam os angolanos atracaram. Mais precisamente no porto de Itajaí. Por alguns dias, eles tiveram de permanecer embarcados, até que recebessem a autorização para entrar no país e recomeçar a vida longe de casa.
Muitos dos angolanos ainda moram em Itajaí. Rosária chegou a constituir família lá. Estudou até a sexta série primária e largou a escola para trabalhar. Precisava ajudar os pais. Depois de um tempo, casou. Teve quatro filhos – hoje já criados. Depois, sete netos. E junto com as alegrias das conquistas e realizações, vieram grandes perdas. Dois netos morreram ainda bebês. A mãe, lutou contra um câncer. Morreu há 10 anos. Três anos depois, o pai se foi. Sofreu um infarto e morreu nos braços de Rosária. “Eles foram tão guerreiros, lutaram tanto e acabaram assim”, diz, inconformada.
Foi depois de tantas perdas (e também do divórcio) que a angolana deixou Itajaí rumo a Tijucas. Tinha perdido muita gente e era aqui que o irmão morava. “Eu fiquei muito depressiva. Foi em Tijucas que consegui descobrir a paz que eu procurei por tanto tempo”, garante a ajudante de cozinha.
Rosária nunca mais pisou na Angola. Nem tem vontade. Tem notícias apenas no que é contado numa associação criada pelos refugiados, em Itajaí, que, inclusive, recebeu recentemente visita de representantes do Consulado, dispostos a ajudar caso queiram visitar o país. “Quem ficou por lá não gosta dos que fugiram. Não tenho notícias dos parentes porque, durante a guerra, cada um foi para um lado. Lá era lindo. Mas minha terra agora é aqui”, assegura, ainda que confesse um pouco de curiosidade em saber como o tempo agiu além-mar.
“Vira e mexe eu lembro dos golfinhos ao redor do navio. Do mar azul. Lindo!”, comenta, com os olhos cheios de lágrimas. Não de tristeza. E sim de saudade de uma viagem sofrida, mas na companhia dos pais e mergulhada na esperança de uma vida melhor. Contudo, a menina sonhadora ficou naquele navio, ainda acenando para os golfinhos. Ainda sem saber o destino.
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