“Estrangeiros porcos!”, grita repetidamente o homem que resume toda a repulsa que temos por um ser humano, com o cabelo lambido e olhar de quem acredita ser de uma raça superior. Nos xinga mesmo depois de recolhermos os corpos que trancavam o caminho do todo-poderoso da Alemanha. Algumas pedras são lançadas em nossa direção. Não podemos esboçar qualquer sentimento. Na verdade, já nem temos mais reação. Só queremos que acabe o sofrimento. Talvez a morte seja o remédio. E ainda sob o olhar e gritos de Hitler, dona Helena abre os olhos. Acorda assustada. Não era um pesadelo. Eram as lembranças do passado, que insistem em voltar sempre que ela fecha os olhos. O campo de concentração nunca a abandonou.
Era setembro de 1939 quando a Alemanha Nazista invadiu a Polônia. Helena Sekala tinha 14 anos. Viu toda a família ser morta e, colocada num trem, embarcou rumo ao pesadelo que a acompanharia pelo resto da vida. Hoje, aos 90 anos, sozinha num lar de idosos em Tijucas, ainda sente o cheiro da chegada a um campo de concentração na Alemanha. “O trem estava cheio de pessoas jovens. Os velhos eles não levaram, mataram antes. Ouvíamos uma música alta e de longe já dava para ver a fumaça. E não demorou para que nós sentíssemos o cheiro de carne frita. Eles jogavam pessoas vivas lá, antes raspavam o cabelo, tiravam as roupas e arrancavam os dentes”, relata, como se ainda respirasse o ar fétido de mais de sete décadas atrás.
Foram mais de cinco anos presa. O convívio com a morte era diário. Helena estava sozinha. Sem família, sem amigos e, aos poucos, sem vontade de viver. “Eles nos tratavam feito cachorros. Todos os dias eu tinha medo de morrer lá. Bombas e mais bombas. Fogo. Fome. Só lembranças ruins. Era muito pior do que mostram os filmes! Infelizmente, ainda lembro de tudo. Quando fecho os olhos vejo Hitler passando, nos chamando de estrangeiros porcos e jogando pedra em nós. Coisa ruim a gente não esquece”, narra, enquanto viaja num passado que preferia ter deixado nas ruínas pós-guerra da Europa.
No campo de concentração, Helena usava um uniforme verde escuro com a letra “P” no peito. Era um indicador do motivo pelo qual ela havia sido capturada pelos nazistas: “P” de polaca. Trancada, trabalhava numa fábrica de artefatos bélicos e era proibida de conversar com os outros presos. Da mesma forma, tinha que baixar a cabeça na passagem dos alemães. Qualquer comunicação seria motivo para que ela e quem a respondesse irem para a forca.
Pelo fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, Helena teve a certeza que iria morrer. “Separaram um grupo com 30 moças. Eu estava entre elas. Já tínhamos tomado banho, mas nos separaram para ir a um segundo banho. Sabíamos o que isso significava: iam nos levar para a câmara de gás. Só que depois, não sabemos por qual motivo, desistiram. A verdade é que a gente já estava cansada da vida. Naquele momento, pensar na morte nos tranquilizava. Seria uma forma de parar de sofrer”, desabafa. Setenta anos depois de ganhar a liberdade – com o fim da Segunda Guerra e a derrota da Alemanha – os olhos azuis celestiais ainda transparecem todo o sofrimento dos mais de cinco anos em que foi refém dos nazistas. Viver perdia o sentido conforme enxergava mais e mais crueldade.
RECOMEÇO: uma prisioneira das lembranças
“Ainda lembro da estrada que tinha corpos como lixo. O sangue escorria como água da chuva. E nós tínhamos que limpar para o Hitler passar”
Passados 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, do fechamento dos campos de concentração e da tentativa de nova vida dos sobreviventes, Helena é vítima da própria lucidez. Há nove meses, ela vive no Lar Santa Maria da Paz, em Tijucas. Perdeu o marido há sete anos. O único filho também morreu. Restaram dois netos e a nora, que a visitam periodicamente. Os 90 anos de idade e os traumas do passado não afetaram em nada a memória. Ao contrário do que ela gostaria. “Tudo que eu mais quero é esquecer de tudo, perder todas as lembranças. Ainda lembro da estrada que tinha corpos como lixo. O sangue escorria como água da chuva. E nós tínhamos que limpar para o Hitler passar. Nada sai da minha cabeça, por mais que eu tente não mexer no passado”, confidencia.
Em 1945, quando os alemães perderam a guerra, os presos foram libertados dos campos de concentração. Mesmo neste momento que era para ser de alegria, Helena tem recordações tão ruins quanto as do tempo em que estava trancada. “Quando a guerra acabou, vimos russos, americanos e franceses matarem muitos alemães. Estupros, roubos... Eles se vingaram. E nós presenciamos tudo isso”, salienta, também com repúdio à violência daqueles que a libertaram.
Helena foi, então, levada para a Itália junto com outros sobreviventes dos campos de concentração espalhados pela Alemanha. Lá, podiam escolher para qual país queriam recomeçar a vida. Ela já não tinha mais família, amigos ou pátria. Nunca mais pisou na Polônia. Entre o fim da guerra e a ida para outro país, conheceu o amor num jovem polaco com história igual a dela. Outro sobrevivente. Decidiram que o destino deles seria o Brasil. Embarcaram, então, numa viagem de um mês pelo mar. “Passamos muito frio na Alemanha. Queríamos esquecer essa sensação e escolhemos o Brasil por ser um lugar quente e longe de onde passamos tanto sofrimento”, justifica. A primeira parada foi no Rio de Janeiro. Só depois vieram para Santa Catarina. Ironicamente, foram para Blumenau – cidade de colonização alemã. “Eu tinha muito medo que eles viessem no Brasil, atrás de nós, para se vingarem. Por muito tempo pensei nisso”, confessa.
TRAUMAS NO PRESENTE
No lar de idosos, dona Helena é observada por uma psicóloga. Tem dias que ainda volta no passado e sofre como se fosse, ainda, a menina polaca de 14 anos prestes a ser capturada pelos nazistas. “Ela não fala sobre o assunto. Nunca nos contou detalhes do que aconteceu naquela época. Só tem vezes que nos diz que não dormiu porque é polaca e os alemães querem a pegar”, conta a psicóloga Giovanna Ronchi. Ela comenta que muitos dos idosos sofrem por traumas do passado, mas que o caso de Helena é peculiar. “É muito delicado, por isso não falamos sobre isso, preferimos estimular que ela viva e fale sobre o presente”, ressalta. Helena também recebe acompanhamento psiquiátrico. E em todas as conversas, sempre destaca o maior desejo: esquecer Hitler, esquecer a música na chegada do trem, esquecer o cheiro da fumaça do campo de concentração. Quer que todas as lembranças desapareçam.
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