Por Cláudio Eduardo de Souza
O ano era 1994. Com seis anos de idade recém-completados e olhar que ia do assustado ao curioso, saio do ambiente colorido da Pré-escola para sentar nas cadeiras com carteiras enfileiradas da sala de aula. Era chegada a hora de ser alfabetizado: a temida “Primeira Série”. Estudava na escola estadual Deputado Valério Gomes, no bairro da Praça, em Tijucas. Com uniforme branco e azul escuro, para diferenciar dos que estudavam no colégio municipal, que ficava menos de 200 metros de distância, mas que usavam traje branco e vermelho.
Numa turma lotada, inclusive com alunos mais velhos – aparentemente, naquela época não existia por aqui a tal Educação de Jovens e Adultos; estávamos todos no mesmo barco, à espera do “beabá”. Com aquele frio na barriga, típico do primeiro dia de aula, esperamos a chegada da professora. Com voz levemente rouca e firme, ela se apresenta: Salete. A nossa “Tia Salete”. Vezes rígida, vezes doce, tentava fazer com que cada um evoluísse ao seu ritmo. E ali eu já me dedicava ao máximo para tentar fazer a letra tão desenhada e caprichada quanto a dela, ou para juntar as sílabas e formar palavras na leitura com a mesma clareza com que ela fazia. Queria ser notado!
Um ano se passou, seguimos para nova turma. Nova professora, nova fase. “Tia Salete” seguiu por lá, dando aula inclusive para meus irmãos. Anos se passaram e não mais a vi. Permaneci na mesma escola até a conclusão do Ensino Médio, em 2004. Mas ela não estava por lá. Descobri que já havia se aposentado. Era justo. Merecia o descanso depois de tanto que já havia feito pela nossa Educação.
Mais de duas décadas depois de ter passado por ela na “Primeira Série”, nos reencontramos. Ela descobre que abri um jornal e que realizo campanhas sociais. E ali nos reunimos – desta vez por causas em comum. Descubro que a “Tia Salete” dedicou seu tempo livre a tarefas religiosas. E não se contentou apenas em emprestar seus dons pedagógicos para a Catequese. Abraçou mais e mais tarefas na Igreja Católica da cidade. Por fim, estava à frente da capelinha fundada na comunidade carente do Jardim Progresso, lutava para que eles fossem notados e ajudados. Abraçávamos, ali, lutas em comum: eu arrecadando alimentos em ações solidárias e ela destinando às famílias necessitadas.
Ano passado, por esta época, sou chamado por ela. Chegando, me entrega uma carta escrita à mão, com o título “Reinventando a Educação”, em que ela defende a valorização dos professores e aplaude a ação dos profissionais do magistério em meio à pandemia da Covid-19. “Escrevi e quis te entregar para fazeres o uso que achares prudente. Pode colocar no jornal, se quiser”, comentou, após ter lido em voz alta cada palavra. Queria garantir que eu entendesse tudo que estava escrito – como se tivesse perdido aquela letra de professora que me inspirou, no passado, a dedicar horas e horas nos cadernos de caligrafia. Depois, voltou ao passado para me confidenciar: “eras um menino tão dedicado, que eu não tinha dúvidas de que enfrentarias todas as dificuldades e vencerias. Até hoje te uso como exemplo!”, e só ali eu soube que, lá em 1994, ela tinha me notado! O orgulho que tínhamos um pelo outro era recíproco. E a gratidão também.
Final de dezembro de 2020 estávamos juntos em mais uma ação social de Natal. Semanas depois, somos surpreendidos com problemas de saúde preocupantes: eu com Covid-19, ela com complicações no coração. Mesmo do hospital, me envia mensagens perguntando como estava minha saúde. Ao final da conversa, envia um áudio que, ouvindo hoje, me soa como a despedida de uma professora amorosa: “toma cuidado. Pede às pessoas para se cuidarem. Não adianta a gente ter tudo na vida e não ter a vida, né lindo? Fica com Deus, tá? Te amo muito! Melhoras”. E no início de abril deste ano, ela se foi: Maria Salete Marchi nos deixou aos 68 anos. Deixou seus três filhos, netos, projetos e sonhos de ver um mundo menos desigual. No entanto, sua ida não apagou os bons exemplos de quem passou pela vida de milhares de crianças daqui. Eu? Sou apenas um entre tantos que seguem perpetuando seus ensinamentos e valores. Porque a missão de um professor vai muito além das salas de aula, cadernos e livros. Eles deixam marcas que nunca se apagam.
Aos mestres (que temos por perto ou aos que se foram), todo nosso carinho.
Uma nova realidade. Como primeiro passo “O Professor”
A valorização do professor é, e deve ser, o primeiro passo para garantir uma educação de qualidade. Com o distanciamento social, as aulas foram suspensas e a educação não-presencial tornou-se uma alternativa e um grande desafio, com aulas on-line sem tempo adequado para aprender! O processo pedagógico precisou ser aliado na batalha pela preservação do direito à Educação de todos. Foi isto que aconteceu: o professor foi obrigado a reinventar-se.
Mesmo em meio às dificuldades, desafiar e revisar novas técnicas pedagógicas em uma nova tecnologia de trabalho foi o passo para dar continuidade às aulas à distância. Portanto, nossos professores, é admirável ver seus esforços para tentar diminuir os impactos do confinamento que estamos vivendo. Também é inspirador ver a criatividade, coragem, força de vontade, persistência, responsabilidade, respeito, competência, sabedoria em frente a uma tela de computador.
Vejo que as mudanças tecnológicas impactaram diretamente a valorização do professor que, ao automatizar tarefas, pode dedicar-se à sua formação, adquirir experiências, novos conhecimentos e também perceber neste cenário as desigualdades sociais que se fazem presentes na vida de muitos alunos, especialmente diante da dificuldade de acesso de crianças e jovens à internet e aos equipamentos eletrônicos para participarem das aulas. Com isso surgiu um desafio individual para cada professor, que se tornou atrativo dentro de um processo pesado, triste e desigual, vencendo barreiras dos medos, receios, clima, tempo, financeiro e muitos outros que não podemos imaginar.
Por isso, quando falamos que ser professor é escrever a história de um futuro, devemos extrair deste momento um olhar sistêmico de que o que importa é aprender a olhar diferentes realidades e buscar articular princípios que desconsidere as diferenças e nos torne mais humanitários, pois precisamos acreditar no valor das mudanças propostas pelo contexto no qual estamos vivendo.
Parabéns aos professores, guerreiros, que não mediram esforços para trazerem uma nova metodologia, um outro olhar à Educação, que mesmo com nossas escolas vazias, salas de aula solitárias, foram capazes de inovar e buscar meios desafiadores para uma mudança, com novas perspectivas para nossos alunos, preparando-os para serem indivíduos ativos, participativos e criativos para atuarem numa sociedade voltada a novas tecnologias.
Professora Alfabetizadora Maria Salete Marchi
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