A cada tique-taque, que soa gritante no silêncio noturno de um lar de idosos, o tempo age. Para uns, mais experiência. Para outros, menos vida. Enquanto uns se valem do avançar dos anos para se unirem a familiares e amigos, outros não tem a mesma sorte. Sofrem pela solidão. E o sorriso vai ficando cada dia mais raro. A depressão tem, então, a brecha para chegar e oferecer companhia.
Sentada na cadeira, as pernas não alcançam o chão e ficam balançando para lá e para cá. O tempo está impresso no rosto, marcado sem dó pelo sol do trabalho diário na roça, numa época em que não parecia estar num eterno descanso. Ao lado, repousam também duas muletas encostadas na parede. As pernas já não dão conta do peso do corpo sozinhas. Maria das Dores teve dez filhos. Só um continua vivo. Aos 72 anos, faz parte dos mais de 50 idosos que vivem no Lar Santa Maria da Paz, em Tijucas.
Maria das Dores veio de Itapema há três anos para viver no asilo. “Eu estava muito fraca das pernas, não dava mais para ficar sozinha. Só que sinto muita falta da minha casa, lá é outra vida”, comenta. O único filho vivo está internado com cirrose. Certa vez, numa ação de natal, todos os velhinhos ganharam um panetone de presente. O de Maria das Dores foi guardado por ela. Queria comer com o filho. Esperou. Nada. O tempo passava e a tristeza aumentava cada vez que via o panetone ainda inteiro. Ele não apareceu. Na versão protetora de uma mãe coruja, ela conta que o filho chegou tarde, mas que a conversa compensou. No entanto, a história é outra: vendo a aflição de Maria das Dores, funcionários do lar foram atrás do filho. Quando encontraram, levaram para que a mãe pudesse ter o sonhado natal.
Desde que o filho foi internado, Maria das Dores não recebeu mais visitas e a solidão maltrata. “Os dias passam devagar aqui. Eu fico a maior parte do tempo assistindo TV. Prefiro ficar quietinha no meu canto. Tem dia que estou bem, tem dia que não... Mas sei que a vida é assim”, tenta se convencer. Quer, ainda, provar que há agito na rotina do asilo. Conta que, certa vez, mexeram no guarda-roupas dela. Maria das Dores não gostou, brigou, ficou nervosa. Agora, tempos depois, ri de todo o ocorrido. Uma gargalhada abafada, baixinha, de quem não faz isso há algum tempo. “Fiquei brava, mas tudo bem. Passou! Tenho muita roupa velha. Estava na hora de dar”, conclui, sem deixar o sorriso escapar.
Mas é falar da família para que o semblante mude. A lágrima escorre pelo canto do olho, mas logo ela pega a ponta da blusa de lã e enxuga os olhos. “Eu vou falar com minha neta, vou pedir para ela me levar para casa. Não quero ficar aqui para sempre”, garante, talvez tentando, mais uma vez, convencer a si própria a ter esperanças. “A gente cria os netos e os filhos e nunca imagina que vai ficar assim”. Quando diz “assim”, quer dizer “sozinha”.
Metade dos idosos do Lar de Tijucas têm depressão
Para a psicóloga da entidade, que acompanha a rotina dos idosos, visita de familiares é um dos melhores remédios
Hoje, o Lar Santa Maria da Paz abriga 57 idosos. Pelo menos, metade é vítima das ausências de familiares e de autoestima. Viram vítimas do tempo. Giovanna Ronchi é psicóloga na entidade. Tem entre as atribuições diárias, perceber o comportamento dos idosos. Não é raro detectar a tristeza. “Pelo menos 50% dos nossos idosos têm depressão. Alguns são casos mais graves e fazem tratamento psiquiátrico. Vir para o lar acentua esse quadro, porque muitos deles acham que são trazidos para cá porque são inválidos, porque não prestam para nada. Perdem a autoestima”, conta a psicóloga.
Para tornar a passagem do tempo mais prazerosa no asilo e, de quebra, desenvolver habilidades e provar aos idosos que eles são úteis, Giovanna tem feito oficinas de artesanato. Nem todos querem participar. No entanto, ela comenta que o resultado com a maioria é positivo. Contudo, reconhece que o melhor remédio que pode ser dado aos velhinhos não está relacionado a qualquer atividade ou aparece em prescrições médicas. “A presença da família reduziria a depressão. É impressionante a mudança em cada idoso que recebe visita”, avalia.
Da depressão à morte: relato de uma filha
A analista Laura Fernandes, de 25 anos, lamenta não ter compreendido – em alguns momentos – a gravidade da doença da mãe. Era depressiva. E, conforme a idade avançava, o quadro ficava pior. Entre uma crise e outra, chegou a ficar internada. Da última vez, após ameaçar tirar a própria vida, trocou de médicos e partiu para uma medicação mais forte. A família ainda não sabe se por culpa disso, mas, em 2013, ela foi encontrada morta na cama. Tinha 58 anos.
“Minha mãe tinha um longo histórico de depressão. A primeira crise foi aos 15 anos. Durante algum tempo, ela viveu muito bem: viajou, trabalhou, namorou... Mas tinha seus altos e baixos. Com 30 e poucos ela conheceu meu pai, com 34 eu nasci e com 36, meu irmão.
Conforme o tempo passava e eu crescia, notava os altos e baixos que minha mãe tinha, por muitas vezes achava que era preguiça o fato de ela ficar dias inteiros trancada no quarto. Pura falta de informação e até diria um pouco de insensibilidade da minha parte. Enfrentamos épocas de ela ficar mais de uma semana reclusa, levantava para fazer comida e logo deitava.
Em 2011, já mais velha, ela foi internada depois de ter uma semana de surto (ameaçou vizinhos e meu irmão). Lá ela ficou por 20 dias. Após isso, passou um bom tempo bem, veio me visitar, visitou as irmãs. Parecia que havíamos superado toda a fase ruim. Em 2012, ela teve outra crise, foi internada no hospital, ficou na emergência por alguns dias e foi liberada. Percebi e soube que não apenas a depressão havia atingido ela, agora ela também tinha na sua ficha a bipolaridade. Medicamentos trocados, cuidados maiores.
Em 2013, foi a pior de todas as crises: passou semanas sem sair do quarto, brigava constantemente com meu irmão, deixou todos os afazeres da casa para trás, só saia do quarto para ir ao banheiro. Em meio a uma crise de surto, entrou na casa da nossa vizinha e tentou se matar, nesse momento vimos que ela precisaria ser internada novamente e foi o que fizemos.
Ela permaneceu na ala psiquiátrica por 24 dias. Nesse período, teve um acompanhamento bem forte de médicos e a troca completa de medicamentos. Após sair da internação muito debilitada, fui fazer uma visita num final de semana. Foi a nossa despedida. Ela faleceu pouco depois, na noite de 10 de abril, em casa, possivelmente dormindo. Acredito que a nossa desinformação e falta de compreensão foram pontos que poderíamos ter melhorado.
Laura Fernandes, 25 anos.”
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